quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Resenha de Caio Riter sobre Sangue de Barata

Por uma literatura sem sangue de barata
Caio Riter

A escrita para crianças ainda hoje carrega consigo o rótulo de literatura menor, como se os pequenos leitores fossem menos exigentes e, por isso, os textos destinado à infância pudessem exigir pouco. Torto engano (talvez todos os enganos sejam mesmo tortos). Escrever para crianças exige muito mais do seu autor. Exige que ele, além de tematizar algo, tenha que dar asas à arquitetura textual e a linguagem, a fim de que ele possa encantar o exigente coração infantil. Exige também que ele fuja no lugar-comum (presente na origem da LIJ) do didatismo, ou do paradidatismo. Nenhuma literatura que se arvore a ser vista como tal ensina algo abertamente. Mas, sim, forma. Logo, a literatura infantil pede autores conscientes de seu papel formativo, mas também autores que estejam em sintonia com seu público, propondo uma escrita que propicie prazer, mas que também tenha algo a ofertar, algo que vá além de um deleite que seja mero passatempo.
A literatura infantil não é anódina, não é indolor, não é incolor, não fuga do real. Todos os elementos que dão cor, que fornecem dor, que problematizam a vida estão presentes na boa literatura para crianças, assim como são parte da boa literatura para gente grande. Logo, se há uma má escrita para adultos, aquela que não dispensa a plurissignificação, que aponta apenas para uma leitura, o mesmo pode ocorrer com a feita para crianças. A boa, a grande literatura não possui sangue de barata. Ela incomoda, ela se sente comprometida, ela interfere, muda, transforma.
Pois Christian David ousou tornar a literatura para crianças um Sangue de barata, livro editado pela Editora Paulinas, mas que não traz em si o marasmo do que tal expressão suscita. Não há sangue frio, não há covardia, não há marasmo. Através da história de Barnabé, que dialoga intertextualmente com a obra máxima de Kafka, o autor fala da necessidade de saber-se parte do todo. Afinal, acordar virado inseto asqueroso, debaixo da cama, é algo que compromete, que desacomoda, que faz com que o garoto repense a vida e faça suas aprendizagens. Barnabé é menino comum que experimentará uma situação singular. No corpo de algo abjeto, ele sentirá a vida pulsar de outra forma e estenderá olhar distinto para o fora de si. E a opção por uma prosa poética propõe deleite com as palavras, sem abrir mão da necessária reflexão que a boa literatura promove.
Sangue de barata é uma história de aprendizagem que encantará os pequenos. Mas, com certeza, não apenas a eles. Afinal, conforme apregoava Orígenes Lessa, a boa literatura infantil é aquele que é lida com prazer pelos adultos também. São textos que contribuem com a desterritorialização do leitor que contribuem para o amadurecimento da crítica em relação à escrita para a infância. E Christian David faz isso.